terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Marcada para morrer

Por Lúcia Rodrigues

Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, pode ser a próxima vítima do terror imposto pelos latifundiários que querem impedir o avanço da reforma agrária no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país. A única plantação de alimentos que existe em Salto da Divisa é a do acampamento do MST. No restante das terras, só capim e poucos bois.

A luta pela terra no Brasil ainda representa risco de morte para quem defende sua divisão. Reforma agrária são duas palavras que quando conjugadas se tornam malditas nos rincões controlados pelo latifúndio. O poder dos coronéis é lei nesses lugares. Domina tudo: desde a política local à rádio que veicula as notícias. Tudo, absolutamente tudo, é subjugado à lógica de uma oligarquia rural que atravessou séculos intacta e permanece com praticamente a mesma força discricionária do passado.

A pequena Salto da Divisa, município localizado no nordeste mineiro do Vale do Jequitinhonha, é o exemplo gritante dessa realidade. Latifúndio e terror se conjugam contra aqueles que ousam se levantar em defesa da reforma agrária. O pavor de retaliações fez com que vários entrevistados pedissem para não ter os nomes revelados. A reportagem acatou a solicitação e decidiu atribuir nomes fi ctícios a todos os entrevistados ligados ao MST, menos a Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, ameaçada de morte pelo latifúndio.

A freira dominicana que vive há mais de três anos no acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Dom Luciano, onde residem 75 famílias, se transformou no alvo preferencial dos latifundiários. É dela a principal voz que se ergue para denunciar as arbitrariedades dos donos da terra na região. A atitude corajosa rendeu a ira dos que teimam em perpetuar a situação de injustiça.

Irmã Geraldinha convive há meses com o medo de ser assassinada a qualquer momento. No princípio, as ameaças chegavam pelo celular. Em um único dia, recebeu três ligações no aparelho. Do outro lado da linha, a pessoa não identifi cada transmitia sempre a mensagem de morte. O terrorismo psicológico fez com que a freira quebrasse o chip do celular. Agora poucos possuem seu novo número, e as ameaças deixaram de ser feitas por via telefônica. Chegam por companheiros que moram no acampamento e que ouvem dizer na cidade que ela está marcada para morrer.

No latifúndio brasileiro, ameaça de morte é quase a certeza de concretização. Foi assim com Chico Mendes, irmã Dorothy Stang, Margarida Maria Alves e tantos outros que tombaram na luta por justiça social no campo. Como nos outros casos, o medo não afugentou a freira da resistência aos poderosos. Apenas a fez mudar seus hábitos Irmã Geraldinha não repete, por exemplo, o pernoite no mesmo barraco. Alterna o sono em vários locais dentro do acampamento, para impedir que o inimigo invada sua casa e a torne presa fácil da morte. A reportagem de Caros Amigos acompanhou a via crucis da freira durante quatro dias. Dividiu com ela, inclusive, os mesmos barracos.

Estado de tensão
Um acontecimento em particular deixou a freira temerosa de que um eventual atentado pudesse ocorrer. Era noite, e a informação de uma companheira do acampamento, que havia visto um feixe de luz vindo do mato próximo do local onde foram erguidos os barracos, deixou a irmã Geraldinha apreensiva. Olhares mais atentos não identifi caram o alerta, mas também não conseguiram tranqüilizar a irmã. Qualquer barulho do lado de fora do barraco era motivo para um sobressalto sobre o colchão.

A ausência de iluminação, o único ponto de energia elétrica no acampamento é o do centro comunitário que também é a única construção em alvenaria, joga contra a segurança dela. A noite sem luar torna o ambiente sombrio. Nos barracos, com paredes feitas de folhas de coqueiro ou de taipa (barro prensado entre canas de bambu) e cobertura com a tradicional lona preta, apenas a luz das velas, que se acendem e se apagam rapidamente para neutralizar o alvo de possíveis ataques.

O esquema de segurança do MST no acampamento foi reforçado desde que a freira passou a sofrer ameaças. Na entrada do acampamento da Fazenda Manga do Gustavo, localizada a aproximadamente 6 km da cidade, uma corrente de ferro impede a passagem dos carros que se aproximam. Ali, há sentinelas 24 horas por dia. Mas os únicos instrumentos de proteção de que os vigilantes dispõem para combater uma eventual invasão de agressores são alguns foguetes, que serão prontamente disparados para mobilizar os companheiros que vivem no acampamento e atrair a atenção da polícia na cidade.

As mulheres participam do turno das 6h às 18h, os homens assumem a partir das 18h e vão até a manhã do dia seguinte. De uma em uma hora, o turno é trocado. Ninguém passa pela portaria sem a autorização da segurança, mas as condições geográficas da área não ajudam no trabalho. Por se tratar de uma fazenda, há inúmeros pontos vulneráveis dos quais os possíveis assassinos podem se valer, para chegar a pé ao local.

À noite, a segurança é reforçada por uma equipe de 24 homens que cuidam da vigilância da área. Além da portaria, uma ronda percorre o acampamento com lanternas para verifi car se não há invasores que coloquem em risco a vida da freira. A segurança dos companheiros que dividem o acampamento com ela é a única proteção que irmã Geraldinha tem durante a noite. De dia, além da segurança dos sem-terra, a Polícia Militar também vai ao acampamento, de duas a três vezes, conversa com a religiosa e retorna à cidade.

“A nossa proteção é de 24 horas”, frisa Daniel Monteiro, chefe da segurança do acampamento, para destacar a importância do trabalho desempenhado pelos acampados na proteção à freira.

O comando do policiamento militar da cidade foi trocado recentemente. O sargento Clóvis Bonfim de Morais é o novo responsável pela área. Veio do município de Teófilo Otoni e traz no braço o brevê de direitos humanos. “Só quem tem muita formação na área (de direitos humanos) usa o brevê”, comenta. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República interveio para mudança no policiamento em Salto da Divisa, segundo o coordenador do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, Fernando Matos.

Antes, o poder fardado não falava em direitos humanos e era caudatário dos interesses do latifúndio. Nem mesmo o ataque de um grupo que tentou incendiar o acampamento do MST demoveu os policiais de uma ação contrária aos acampados.

Rotina de ameaças
“Hoje vou comer bolo na sua casa”, dizia a voz de um homem que se identificou como Ilton Guimarães, ex-vereador e muito próximo aos latifundiários da cidade. Ele ligou para o celular da acampada Cristina Soares, no dia 27 de julho, um dia após a eleição para a Prefeitura de Salto da Divisa e que deu a vitória a Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto (DEM). A eleição aconteceu fora de época devido à cassação pelo TRE do prefeito anterior. Ronaldo faz parte de uma das duas famílias que dominam as terras da região.

O número oculto registrado no identificador de chamadas impediu que Cristina soubesse de onde partira a ligação. A frase, aparentemente sem sentido, ganharia lógica no dia seguinte, 28 julho. Um grupo de quatro homens, em um carro, atearia fogo no acampamento do MST. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou.

Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito e presidente da Fundação Tinô da Cunha, a quem pertencem as terras da Fazenda Manga do Gustavo, onde estão acampados os sem-terra, além da Fazenda Monte Cristo, que os trabalhadores rurais haviam ocupado inicialmente e onde pretendem ser assentados pelo Incra.

Paulo Roberto é o locutor da Rádio Aracuã, controlada pela família Cunha Peixoto. A rádio é uma das trincheiras de ataque da família contra a freira e o MST. Irmã Geraldinha é chamada de bruxa por Paulo Roberto. Ele também xinga as mulheres sem-terra de vagabundas, além de afirmar que o acampamento é local de prostituição.

A conivência do antigo policiamento com a prática truculenta dos latifundiários se evidenciou na condução do caso. Os policiais demoraram horas para atender ao pedido de socorro, segundo relato dos acampados. Além disso, quando chegaram, inverteram a situação contra os sem-terra, que de vítimas, passaram a réus. O boletim de ocorrência registrado pelos policiais militares coloca a freira, que nem estava no local no momento do incidente, como sendo responsável por seqüestro e cárcere privado dos quatro homens.

Para desfazer a mentira, irmã Geraldinha teve de viajar 50 km até Jacinto, cidade mais próxima a Salto da Divisa, com delegacia de polícia, para registrar um boletim de ocorrência relatando o que de fato havia ocorrido. Mas o município de Jacinto não está imune ao poder da família Cunha Peixoto. O Fórum da cidade carrega o nome do pai de José Alziton da Cunha Peixoto.

A pressão contra a freira se intensifi cou a partir de 28 de outubro, logo após a realização de uma audiência contra o falso boletim de ocorrência da PM, que a transformava em sequestradora. No dia 30, um automóvel marca Corsa aparece próximo à entrada do acampamento. Nesse dia, a freira estava na cidade e voltaria sozinha de ônibus para o acampamento. Desceria na estrada e enfrentaria uma longa caminhada até os barracos. Certamente cruzaria com o carro que estava na tocaia. Mas o frei capuchinho Emílio Santi Piro, padre da cidade, achou perigoso ela voltar de ônibus e emprestou o seu carro. A solidariedade cristã permitiu que ela cruzasse o ponto de encontro, antes que o veículo que esperava por ela chegasse. Quando irmã Geraldinha recebeu um telefonema informando que um carro estava na tocaia à sua espera, ela já estava no acampamento.

O mesmo veículo foi visto posteriormente na cidade: o motorista queria saber se a irmã estava no município. Na sequência, em 1º de novembro, a freira recebeu os três telefonemas a ameaçando de morte e resolveu quebrar o chip para atenuar a tormenta.

Pelo menos dois homens que já ameaçaram a freira várias vezes são conhecidos: são dois exsem- terra que foram expulsos do movimento pelos acampados porque eram violentos. Admilson e Caboclo passaram a trabalhar na administração do prefeito Ronaldo. Um é fiscal da varrição de ruas, o outro vigia em uma escola.

Coronelismo
José Alziton é outro que persegue os sem-terra desde o primeiro dia em que o acampamento foi formado. Irmã Geraldinha conta que logo após os sem-terra terem realizado a ocupação, Alziton apareceu na fazenda com duas armas na cintura, fazendo questão de mostrá-las e gritando que aquela fazenda era sua. “Quem mandou vocês entrarem, isso aqui é meu!”, afirmava, furioso. Ao que os sem-terra respondiam em coro: “MST, a luta é pra valer”.

Alziton não é o dono da fazenda ocupada. Ele presidia, até maio deste ano, o conselho da Fundação Tinô da Cunha, proprietária da Fazenda Manga do Gustavo e Monte Cristo, mas foi afastado do cargo por má administração. Em seu lugar, o Ministério Público nomeou um interventor. Além de Alziton, o prefeito Ronaldo também fazia parte do conselho da Fundação.

Os recursos gerados pelas duas fazendas, e por mais três propriedades que pertencem à Fundação deveriam custear os gastos do único hospital da cidade que atendia à população. Os recursos desapareceram e aproximadamente 2 mil cabeças de gado sumiram do pasto. As dívidas com o INSS atingem a cifra de quase 2 milhões de reais, segundo o promotor de Justiça da Comarca de Jacinto, Bruno César Medeiros Jardini. “O hospital era utilizado para fazer política, angariar votos, mas o atendimento era precário”, critica o promotor.

O hospital praticamente fechou as portas, só atende casos de urgência. O prefeito não revela para a reportagem que fazia parte do conselho da Fundação Tinô da Cunha, responsável pela administração do hospital. Antes da eleição que o levou ao cargo de prefeito, o primo José Alziton chegou a encaminhar petição ao juiz da Comarca de Jacinto para se manter à frente da Fundação, argumentando que a posse de Ronaldo reduziria o problema financeiro do hospital. O prefeito Ronaldo nega à Caros Amigos que pretenda destinar recursos da prefeitura para o hospital.

No entanto, ele tentou confundir a reportagem ao afirmar que a prefeitura pagava o salário de três médicos que atendiam no hospital. “O hospital está funcionando porque a prefeitura está pagando três médicos.” Na verdade, os médicos pagos pela prefeitura não atendem no hospital, mas na unidade básica de saúde. “Ficam de plantão no celular”, reconhece o prefeito. Ele não sabe explicar como ocorre a convocação dos médicos pelo celular, quando alguém passa mal. O hospital só atende casos de urgência. O prefeito nem ao menos sabe quantos enfermeiros trabalham no local. “Saúde é uma coisa muito cara”, afirma o prefeito, que tem um salário mensal de 8 mil reais.

Lúcia Rodrigues é jornalista
luciarodrigues@carosamigos.com.br
Revista Caros Amigos

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